CRÔNICAS DA SÓ-OM-ZEIRA - A tomada kármica e o fone rebelde

CRÔNICAS DA SÓ-OM-ZEIRA – A tomada kármica e o fone rebelde

A tomada kármica e o fone rebelde

Era pra ser só uma meditação rápida.
Sentei. Respirei.
Liguei o som.
Mas a tomada decidiu exercer seu livre-arbítrio.
Puf. Nada.
O fio do fone me olhou torto:
“Hoje não, Dalton.”

E ali, cercado de cabos,
comecei a ponderar sobre as sincronicidades elétricas da vida.

O gato pulou no sofá,
desligou o nobreak com a cauda⁽¹⁾.
Lá se foi a trilha de Ravi Shankar
e entrou, sabe-se lá de onde,
Highway to Hell, do AC/DC⁽²⁾.

“Será que o gato é reencarnação do Bon Scott?”, pensei⁽³⁾.
Ele me encarou com olhos iluminados de quem já viveu outras encarnações…
e me ignorou solenemente.
Zen felino.

Fiquei ali, meio perplexo, meio profeta,
meio velho roqueiro tentando entender
se o universo queria silêncio ou distorção.

Lembrei do dia em que minha mãe,
sem querer querendo,
vendeu meus LPs favoritos pra comprar papel-alumínio⁽⁴⁾.
Chorei.
Não pelo alumínio.
Pelos Deep Purple que se foram.
Mas depois gargalhei:
vai ver eles foram parar num altar umbandista,
viraram oferenda sonora pra Ogum⁽⁵⁾.

Aí compreendi:
o karma é uma tomada.
Às vezes encaixa, às vezes dá faísca.
E o fone de ouvido é como a vida:
funciona só de um lado, e mesmo assim seguimos escutando.


Notas de rodapé:

  1. Nobreak: Equipamento que protege aparelhos eletrônicos contra quedas de energia, fornecendo energia temporária. No contexto humorístico, aqui se tornou vítima da cauda do gato, desencadeando um colapso místico-tecnológico.

  2. Highway to Hell / AC/DC: Clássico do rock lançado em 1979 pela banda australiana AC/DC. A canção — “Estrada para o Inferno” — virou hino rebelde e irônico, frequentemente usada como trilha sonora para situações caóticas com humor.

  3. Bon Scott: Vocalista original do AC/DC, conhecido por sua voz potente e estilo irreverente. Faleceu em 1980. A piada de que o gato possa ser sua reencarnação evoca o tema da continuidade da alma com bom humor.

  4. LPs / Vinis: Discos de vinil que marcaram a era de ouro da música analógica. Eram verdadeiros tesouros afetivos para os apaixonados por música. A perda deles é quase uma perda de memórias.

  5. Ogum: Orixá das lutas, da guerra e da tecnologia na Umbanda e no Candomblé. Associado ao ferro, à coragem e às batalhas. A ideia de vinis como “oferenda” musical representa uma fusão cômica entre espiritualidade afro-brasileira e o amor ao rock.

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