AUTOCRÍTICA - ÁGUAS DA SERENIDADE

AUTOCRÍTICA – ÁGUAS DA SERENIDADE

Há momentos em que tudo parece escorrer entre os dedos — planos, certezas, até mesmo a fé que um dia parecia inabalável. Nessas horas, a consciência começa a sussurrar verdades que o ego há tempos tenta abafar. O que estamos fazendo com o nosso tempo? Por que insistimos tanto em controlar o que, no fundo, nunca esteve sob o nosso comando?

A serenidade não vem da ausência de problemas, mas do amadurecimento interno que nos faz parar de lutar contra o fluxo da vida. O dharma, esse chamado interior que insiste em nos lembrar do que viemos fazer aqui, não promete facilidades nem garantias. Ele é um gesto silencioso de coerência com a alma, e não um investimento esperando retorno. A frustração nasce quando confundimos dever com recompensa. Como Krishna ensina, agir sem apego ao resultado é o começo da libertação.

Mas como fazer isso com um ego que se debate por controle e reconhecimento? Quantas vezes você se cobra por não ser perfeito? Quantas vezes mede sua evolução por métricas alheias? É nesse jogo de máscaras que perdemos a leveza. A consciência não grita — ela apenas observa. E toda vez que nos alinhamos a ela, a rigidez se dissolve um pouco mais. A “consciência pesada” não é castigo, é bússola. E o ego frustrado? Só está dizendo que esperava que a vida fosse um roteiro previsível. Mas não é.

Aceitar essa incerteza é mais que um ato de coragem: é um gesto de confiança na sabedoria da própria existência. E se, em vez de ver seus obstáculos como injustiças, você os encarasse como capítulos de um livro que você mesmo escreveu, ainda no plano da alma? Ser autista, passar por falhas financeiras, sentir-se deslocado — e se tudo isso fosse parte de uma programação maior, feita por você, para aprender algo que não se ensinava nas avenidas do sucesso?

A autoprogramação não é masoquismo espiritual. É alquimia evolutiva. Transformar limites em trilhas, dores em lucidez, e karma em aprendizado. Nada disso exige destruição do ego — apenas reeducação. O ego é útil, mas precisa aprender a não comandar o espetáculo. Pequenos gestos ajudam: anotar conquistas simples, olhar-se nos olhos com compaixão, fazer algo bom sem precisar ser visto.

Viver é aceitar o improviso. A sabedoria não está em ter as respostas, mas em sustentar o silêncio diante do mistério. Como disse Kierkegaard, a ansiedade nasce da liberdade. E o paradoxo é este: quanto mais você tenta controlar, menos livre se sente. Mas quando solta as rédeas, começa a surfar as ondas do acaso com a graça de quem já não precisa vencer — apenas viver com verdade.

O karma não é um castigo: é uma professora exigente. Cada retorno, cada desconforto, é um convite à autoanálise. Não um tribunal, mas um espelho. E quando você percebe que tudo o que vive está a serviço da expansão da sua consciência, até a dor ganha propósito.

A luz que buscamos não vem pronta — ela se constrói com os estilhaços da dúvida, com o barro das imperfeições, com a lucidez que nasce dos tropeços. Como diz o paradoxo zen: “A água mais pura surge do lodo mais denso”. Não tema sua inquietação: ela é o sinal de que algo dentro está despertando.

Hoje, antes de dormir, sorria para uma parte sua que julgava inaceitável. Esse gesto singelo pode ser o início de uma nova conversa interna. Não com o ego, mas com a essência. E nesse silêncio sereno, talvez você ouça — por fim — a voz mansa da sua própria alma.

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