Por Hidemberg Alves Frota – <http://tematicasconscienciais.wordpress.com> em 26/04/2018
I
Materialistas e espiritualistas
Há materialistas que agem como espiritualistas e espiritualistas que agem como materialistas.
Sob o ângulo da evolução da humanidade, mais vale um materialista moderado, honesto e humilde que um espiritualista fanático, ardiloso e arrogante.
Aparentes materialistas, desvinculados do dever de castidade dogmática e abertos à análise descondicionada e despreconceituosa da realidade, muitas vezes acabam evidenciando maior razoabilidade e discernimento que muitos ditos espiritualistas (antimaterialistas), avessos, todavia, ao benefício da dúvida e propensos ao narcisismo dogmático e/ou institucional.
Obtempera Swami Vivekananda:
Para tornar-se religioso, comece sem nenhuma religião, faça sua própria escalada, perceba e contemple os fatos por si mesmo. Quando proceder assim, então, e só então, terá uma religião. Antes disso, você não é melhor que os ateus, talvez seja até pior, porque o ateu é sincero. Ele se levanta e declara: — Nada sei sobre isso — enquanto os outros também não sabem, mas vão adiante batendo no peito: — Somos pessoas muito religiosas. Que religião eles professam, ninguém sabe; engoliram alguma história da carochinha e os sacerdotes pediram que nela acreditassem.[2]
É possível que um espiritualista seja tentado a criticar um materialista e afirmar que este, ao renegar a ampliação dos horizontes conscienciais da humanidade (movimento convergente no campo científico, político, artístico e consciencial[3]), renuncia, em certa medida, ao progresso de si próprio[4].
É possível, também, que um espiritualista se sinta propenso a considerar que o materialista, adverso a um olhar espiritual sobre a vida, o universo e a epopeia humana, vive em meio ao vazio existencial de quem nada acha para além do que se encontra visível a olho nu na paisagem do mundo material.
Em que pese serem críticas ponderáveis, o espiritualista deve atinar com isto: se, a despeito das limitações do materialismo, o materialista se empenha em viver e tratar os demais com dignidade, em vencer as limitações do egoísmo e em pensar, sentir e agir conforme a norma de ouro da justiça (“Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti”[5]), demonstra mais maturidade que o fiel que, sem maiores preocupações com o exercício do autoconhecimento, do autoenfrentamento, do discernimento e do senso crítico, entrega à autoridade eclesiástica a condução de sua existência[6].
Pondera Vivekananda:
E pode um homem jamais ter pisado numa igreja ou mesquita, jamais ter realizado um ritual; se ele sente Deus em seu interior e, dessa forma, ergue-se acima das vaidades mundanas, esse homem é um santo, um bem-aventurado, dê-lhe o nome que quiser.[7]
II
Purismo e sincretismo
Puristas criticam sincréticos, alegando que estes desnaturam e deturpam o real sentido de conceitos e valores religiosos. Sincréticos criticam puristas, sob o argumento de que estes, presos à ortodoxia doutrinária, cristalizariam sua visão de mundo e priorizam controvérsias teológicas em detrimento de questões éticas.
Cada um deve seguir (e ponderar sobre) o caminho que suas necessidades existenciais ditarem, tendo em mente que a rota escolhida não é melhor nem pior que as demais: é apenas a vereda mais propícia ao momento evolutivo em que se encontra.
Cada um tem direito de fazer suas ressalvas e elogios às cosmovisões, correntes de pensamento, ideologias e valores com os quais tem contato.
Contudo, devemos nos precaver contra a tendência humana de se buscar a prevalência de determinada linha de pensamento sobre as demais, baseada, muitas vezes, na percepção de que aquela possuiria o conhecimento mais próximo da verdade e estas, comparadas à primeira, estariam equivocadas e ultrapassadas.
Ao final, continua vigente o mesmo paradoxo: no campo consciencial (independente da corrente de pensamento escolhida), em que tanto se advoga a paz mundial, vicejam tantas e tão intensas contendas.
“Constatamos assim que nada trouxe mais bênçãos aos homens quanto a religião, nem nada trouxe tanto horror quanto a religião.”[8]
Reflexionam Dalton Campos Roque e Andréa Lúcia da Silva:
Não conheço nenhuma outra área em que os egos sejam tão exacerbados quanto a consciencial (espiritual, bioenergética, religiosa, projetiva, projeciológica, conscienciológica e afins).
É um estigma multimilenar e primitivo que vem arraigado a nossa holomemória ou memória consciencial em forma de orgulho, vaidade e arrogância pretensiosas.
Quando não se deseja convencer os outros que sua linha é a melhor, a única correta e onde existe a “salvação”, arroga-se a superioridade de trilhar uma linha “mais evoluída”, ainda argumentando que não deseja convencer ninguém. Na verdade posturas semelhantes de um mesmo ego religioso exacerbado.[9]
Na seara consciencial (a englobar as religiões e as filosofias espiritualistas humanas, assim como as autointituladas neociências estudiosas de temáticas extrafísicas), por vezes os indivíduos esposam comportamentos próprios de quem se prepara para um conflito armado sectário e dá a si a liberdade de acionar todos os artefatos de defesa do ego disponíveis em seu íntimo, o que patenteia a fragilidade e as incertezas íntimas com as quais a pessoa se defronta, quando instada a elaborar e a expor o seu ponto de vista acerca dos mistérios do universo e da dimensão espiritual ou extrafísica da natureza e do ser.
[1] Originalmente, texto finalizado em maio de 2006. Revisado em 30 de junho de 2010. Também disponível em formato PDF. Publicado na Revista Cristã de Espiritismo, São Paulo, v. 10, n. 90, p. 48-49, mar. 2011, sob o título “Universalismo ou ortodoxia: qual o caminho? Cada um deve seguir o que suas necessidades existenciais ditarem, ciente de que a rota escolhida não é a melhor nem pior [do] que as demais”.
[2] VIVEKANANDA, Swami. O que é religião. Rio de Janeiro: Lótus do Saber, 2004, p. 12.
[3] ELLAM, Jan Val. Muito além do horizonte: a ligação entre Kardec, Ramatis e Rochester. 2. ed. São Paulo: Zian, 2005, p. 294.
[4] Ibid., loc. cit.
[5] Brocardo colhido da seguinte fonte bibliográfica: KELSEN, Hans. A justiça e o direito natural. [2. ed.] Coimbra: Almedina, 2001, p. 54. (Coleção Studium)
[6] ELLAM, Jan Val. Op. cit., p. 268-269.
[7] VIVEKANANDA, Swami. Op. cit., p. 7-8.
[8] Ibid., loc. cit., p. 14.
[9] ROQUE, Dalton Campos; SILVA, Andréa Lúcia da. O karma e suas leis. Curitiba: ISC, 2004, p. 26. (Coleção Coração da Consciência, v. 1)
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